quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Tio Elias

Tio Elias era um velho judeu dono de um antiquário na Rua 28 de Setembro, dentro do comércio de Belém. Minha mãe vivia lá, dele era grande amiga, e com ela íamos nós, seus inseparáveis filhos que faziam dos corredores da loja um mundo de descobertas e selvageria. Uma casa antiga dessas enormes, com corredores a perder de vista, cheia das tralhas mais interessantes do mundo todo.

No sótão, diziam, havia uma jiboia que comia os ratos, mas também podia comer meninos curiosos que se aventurassem onde não deviam.

Um dia ele presenteou meu irmão com uma bola de boliche, acho que a primeira bola de boliche inventada, toda de ferro, e hoje, pensando bem, nem sei se aquilo realmente era uma bola de boliche, quem sabe uma bala de canhão? Só sei que assim foi dada e usada, o que deixou minha mãe bem descontente diante das inúmeras lajotas quebradas com força e peso da bola/bala.

Certa vez, vínhamos na Presidente Vargas em nosso fusca verde e de longe avistamos tio Elias cheio de sacolas e pacotes. Minha mãe, ainda não letrada nas artes dos filhos, comenta na nossa frente, cheia de carinho: “Olha, lá vai o Elias parecendo um judeuzinho errante, todo velhinho”. Claro que, na próxima visita que fizemos à sua loja, contamos tudo a ele: “Tio, tio, a mamãe disse que o senhor parece um judeu errante e velho”. Não esqueço a cara dele, um olhar cheio de sarcasmo para minha mãe, quando perguntou: “Ah é, Lila? Sou um judeu errante e velho?”.

Eles nunca brigaram, sempre se gostaram muito e tinham enorme cumplicidade. Na verdade, ele era a pessoa mais gentil que já vi com todos. Foi ele quem vendeu ou deu as camas de ferro, de viúvo, nas quais dormimos nossa vida toda, que até hoje são nossas, preciosidades que tanto amamos e que, felizmente, suportaram com valentia guerras contra aliens, ataques piratas e pulos entre precipícios mortais.

Por conta dele comecei minha coleção de moedas, e nem sei mais onde está minha coleção de moedas, talvez furtada, talvez perdida, e, se furtada, espero que faça alguém feliz hoje, pois me foi dada com muito amor.

Um dia ele chegou e entregou para minha mãe uma placa de rua, justamente a placa da Rua 28 de Setembro, ainda aquelas de ferro esmaltadas, coisa antiga que não se faz mais. Tinham derrubado uma linda casa portuguesa que ficava na esquina de sua loja, mais um monstrengo em forma de prédio que surgiria, e então a placa jazia sem interesse no lixo de entulhos da obra. Tio Elias se meteu por entre pedras e poeira, resgatou a placa e deu para minha mãe como lembrança sua, de sua loja e dos bons momentos que passávamos lá. A placa está na minha parede agora e sempre me faz lembrar dele.

Na loja também havia um senhor preto que fazia de tudo, um homem muito bonito e forte, já envelhecido pelo tempo e pelas desgraças que deve ter vivido. Não lembro seu nome, acho que minha mãe deve lembrar, e me chamava a atenção o quanto ele era calado e soturno, sempre muito sério e sem risos, apesar dos belos dentes brancos. Diziam, entre cochichos, que ele havia sido escravo, um dos últimos beneficiados pela libertação dos africanos, e que, libertado de alguma fazendo ao redor de Belém, acabou por se unir com o velho judeu branco e viraram quase irmãos. Eu duvidava da história até que, um dia, o vi sem camisa e vi marcas em suas costas que, no meu imaginário, pareciam bastantes com as marcas que deve deixar um chicote.

Na grande sala ficava uma máquina de café, acho que a primeira que vi, além de um infindável de cadeiras de embalo onde se sentavam senhoras e senhores que compravam ou negociavam antiguidades e artes. Ali foram fechados grandes e pequenos negócios, alguns deles ainda hoje na casa de minha mãe.

Foi da loja de tio Elias que veio o baú que hoje fica na sala de jantar, um baú grande e escuro que muito parece com um caixão, e que muito serviu para assustar nossos amigos, todos crianças, quando dizíamos que aquilo era, de fato, um caixão, e que ali estavam os restos de um nosso avô qualquer. Apesar de duvidarem, nenhum deles jamais ousou abrir e verificar se falávamos a verdade.

Desde quando lembro do tio Elias ele já era muito idoso, acho que para combinar com o velho escravo, com a casa centenária e todas as demais antiguidades que moravam ali. Quando ele morreu, nem lembro quando foi que ele morreu, não sei o que senti além de um vazio, de não termos mais um local para passear, minha mãe e seus meninos, um local para passar a tarde ouvindo a chuva cair, bebendo um café bom , rindo das muitas piadas e espertezas e ouvindo o arrastar da jiboia no forro. Perdemos tudo, mesmo que tudo tenha ficado na placa da sala, nos móveis que, de forma ou outra, têm um pouco dele, e nos livros e objetos e joias, e qualquer coisa que passou pela loja de antiguidades.

A casa ainda está lá, no mesmo lugar, hoje dividida em mil lojas de celular – plodutos chineses – compra-se ouro e cautelas da Caixa, mas não sei do senhor preto de quem não lembro o nome, que nem mesmo sei se era escravo, assim como perdi de vista todos que se embalavam sem fim nas cadeiras da sala da loja do tio Elias. Vez ou outra encontro algum desses tios e tias nas ruas e nos abraçamos com ternura, acho que felizes por termos dividido algo tão bom. Agora vou ver se acho minha coleção de moedas.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Os Círios de meu avô

Belém, 11/10/2013

Acordar no dia do Círio era acordar na correria, todos se apressando para banhar e se arrumar, roupa nova comprada para o domingo, tudo dobradinho no sofá da sala, arranjo antecipado para que não houvesse demora. Tinha sempre o dia nascendo, a rua sem barulhos e a correria dos cinco fazendo de tudo para sair logo e cumprir com os planos de todos os anos.

O Círio era passado no janelão da Assembleia Paraense debruçada na Presidente Vargas, onde ficávamos até o passar da Santa, até bem depois do passar da Santa, pois o povo nunca parava de passar e assim ficávamos todos lá, horas e horas assistindo ao desfile de casinhas, barquinhos e miritis, anjinhos e promesseiros descalços, suados, moídos e felizes.

Acordávamos cedo para pegar lugar, três pequenos e seus pais, sacrifício feito para poupar os avós já tão velhinhos e com intocada vontade de estar ali e de tudo participar. Chegávamos por volta de 06:30 e assim tinha que ser, ou logo tudo era tomado de gente.

Sentávamos diante das grandes janelas, felizes pela vitória de conseguir boas vistas, mas alegria que durava pouco, justo o tempo de perceber que ainda estava quase escuro e a Santa só passaria perto de meio dia. Nós, as crianças, éramos meio que plaquinhas de “reservado”, quietinhos nos seus bancos até que, sonolentos, deitávamos e dormíamos um pouco – o que era até bom, pois criança deitada ocupa mais espaço e, assim, guardávamos mais cantinhos para os avós.

Por volta de 07h:30 o pai saia para buscar seus pais numa proximidade qualquer, largados em taxi, as ruas todas fechadas, somente livres ao fluir do mundo de gente que não tardaria a chegar.

Vovô, eu e Digo, maio de 88,
meu aniversário
Ao surgir os avós, eis a alegria de volta, os netos se atropelando ao carinho da avó, às alegres bandalheirinhas do avô, os pequenos acarinhados qual em recompensa pela valentia de madrugar e montar guarda à festa, o heroísmo, na certeza de ver de perto a Santa, e os barcos e anjinho, os conhecidos, e acenar, e cantar, e rezar e chorar.

Foi durante anos, todos os anos de minha vida, até deixarmos de ser criancinhas e já não dormíamos nos bancos às janelas da Assembleia, agora adolescentes emburrados e chateados por acordar cedo, mas nada que durasse muito, só até chegarem os avós. Então voltávamos à meninice nos colos, nos mimos ao amor familiar. Tudo ia como devia, como devia ser a vida, mas a vida também sabe ser triste.

O avô morreu e muito mudou: acabaram os banhos de piscina de sábado na Conselheiro, os primos todos reunidos esperando os lanches da avó regados com Baré comprado na mercearia da esquina; acabaram os papos na porta do casarão, tudo regado com cantar das cigarras ao fim das tardes, o despedir à porta que nunca findava; acabou o Natal ao redor da árvore, presentes organizados por tios, tudo organizado e entremeado de gritos e abre abre abre. O Círio, como era, também acabou.

Por anos, acho que foi medo de chorar que me impediu de sair nas ruas e acompanhar algo que fosse da festa, até que voltou a coragem e decidi sair, e foi bom ter saído, pois percebi que o avô não tinha morrido, não! Estava mais vivo do que nunca em cada rosto suado, cada casinha de miriti e figuras de cera, e no choro emocionado de quando passa a Santa. E nos fogos.

Ele não morreu porque ele era o Círio, nós somos a festa, o Círio que estava ali e sempre estará.

Hoje vejo meu avô em tudo da festa e, apesar do medo de antes, choro tranquilo lembrando dele, choro de felicidade, não de tristeza, por senti-lo ao meu lado no meio da multidão, e sou tão grato à vida, ao Círio, por isso. Grato ao Círio que revive no passado meu avô Fernando. E obrigado por mais esse milagre, Virgem, por deixar por perto quem já está longe, aparentemente distante.

Feliz Círio.

domingo, 6 de outubro de 2013

Letícia

Agosto/2013

Letícia acorda. Letícia chora. Letícia mama e faz manha. 

Vamos trocar fralda. Foi tanto xixi que vazou e molhou fralda, pijama e pai. No trocador, Letícia ri do pai que se desdobra pega fralda pijama algodão água, tudo enquanto segura a filha que ri. Troca fralda, troca pijama, não troca pai, que se for procurar pijama agora acorda filha e pai se acostumou a dormir com xixi de filha que nem fede a xixi.

Depois, remédio e rede, e mais riso de filha que parece se divertir com pai na correria, e rede e música, voz fraca para não despertar a pequena, e rede embala embala embala e filha parece gemer gemido no ritmo da rede e da voz do pai.

Então dorme. Levanta o pai da rede fazendo forçona, porque a pequena já pesa muito, coloca no berço, cobre, cobre melhor, mais um pouco melhor e coloca mosqueteiro. Então filha se vira e se descobre, e pai tira mosqueteiro e faz tudo novamente, e bota mosqueteiro, e então pai deita para dormir, mas aí já pensou na vida e perdeu o sono.

sábado, 5 de outubro de 2013

Parada a cidade ficou



29/09/2013

Se vocês quiserem saber como se parece o fim do mundo zumbi, seres sem cérebro, vontade ou discernimento, somente ávidos por carne humana, talvez devessem vir agora até as proximidades da Praça da República. 


Mas, até sugiro, não venham...


As ruas 1º de março, Carlos Gomes e Avenida Presidente Vargas cheiram a urina. O chão está molhado, e não de chuva.


Nas reentrâncias do Basa se instalou, novamente, um banheiro e sexódromo público dos que aceitam se "pegar" no meio da sujeira.

Na Carlos Gomes, chegando à esquina da Presidente Vargas, me surpreendi com dois homens urinando bem ao lado de um ponto de taxi. Enquanto urinam, brincam e falam com a maior naturalidade, como se aquilo fosse a normalidade, enquanto passamos eu e outro vizinho com seu o filho.

Mal sabia que era besteira me surpreender com aqui: havia pessoa urinando na própria Presidente Vargas, quem sabe a principal via da cidade, centro desta capital.

Sim... Mal escondidos pela estrutura armada em fente ao Basa, para servir de palco para o Círio, convenientemente tapada com placas de madeira, estava algo entre banheiro e dark room. Vi muitas mulheres urinando, mas também homens, que, ou urinam, ou não sei que fazem lá, mas estão todos juntos lá.

Mais para frente, na banca de revistas que fica diante da centenária Pharmácia da República, uma menina, que não deve ter 16 anos, completamente embriagada, vomita amparada por amigos que se divertem com a cena. A cara dela quase encosta no chão molhado. Um dos amigos (amigos?) filma tudo no celular.

O cheiro de bebida adocicada, acho que vinho, se mistura com urina e faz surgir um odor enjoativo e pegajoso como xarope.

Para entrar em casa tive que pedir licença, pois havia muitos sentados diante do portão. Havia uma menina deitada no chão, não se importando que o chão estivesse molhado, e nem quero imaginar do que estava molhado. Me olharam feio porque pedi licença. Imagina, entrar em casa agora, aqui, fazendo-os levantar!? Abuso.

E por falar em celular, António, porteiro do prédio desde quase sua construção, lamenta o furto do seu celular e carteira com todos os documentos e parte do salário. É que António chegou na hora em que passava o trio elétrico, então, para chegar na hora, e já estava atrasado, resolveu passar no meio do povo, no meio da chuva. 

António não é novo, o conheço desde que fui criança, e realmente sei que ele vê maldade em poucas coisas. Não viu maldade na multidão. Foi furtado e ficou a ver navio.

Agora, da janela, vejo a Praça lotada, tomada ainda, e tristemente constato várias pessos urinando nas laterais do antigo Sam e dos teatros Da Paz e Waldemar Henrique. Chega um guarda e ilumina as sombras com potente lanterna, mas os mijões nem se movem, quem sabe entorpecidos por fadas verdes?

Alguns focos de briga se formam aqui e ali. Alguns muitos focos de briga e uma surpresa: enquanto saímos de perto em tais situações, vejo a porrada começar e pessoas correndo, se aproximando para assistir, mundo novo de MMAs em que é normal ver duas pessoas se sangrando quase sem regras.

Logo chega a PM ou a GMBel e a briga acaba, e, na confusão de muita gente ao redor, como saber quem eram os galos na rinha? Todos partem caminhando de braços dados com a impunidade.

Muita PM. 

Muitos carros de polícia, tudo identificado, daqui, pelas sirenes iluminando ao redor. Todos parados, somente assistindo, intervindo somente quando a coisa piora. Eles assistem, somente assistem...

Eu também assisto, somente assisto, e também decido que este é o último post que faço relacionado às paradas GLTBS (?) que terminam aqui pela Praça da República, pois percebo que, no final, o chato sou eu, somente eu, e nada muda, vez por vez, tudo como dantes no quartel de Abrantes.

O chato sou eu, o incomodado sou eu, e os incomodados que se mudem, ainda vão me dizer, mesmo que eu não queira me mudar, mesmo que ame morar perto do trabalho e ame meu bairro, onde nasci e cresci, inclusive.

É... Pensando bem, melhor ficar calado.

Só espero que chova, mas que chova bastante, para ver se some o cheiro ruim que a tudo domina.

Só isso.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Sobre dormir na rua

22/08/2013

Você anda pelo Centro da cidade apressado, correndo para chegar no seu trabalho e se depara com um morador de rua dormindo placidamente no meio da calçada. A primeira coisa que pode pensar é "que vagabundo preguiçoso. Tamanho dia nascido e o folgado ainda dormindo". 

Aí, quando bate meio-dia, você sai do seu trabalho e vai almoçar, tudo na correria porque o tempo sempre é curto. Mais uma vez, você se depara com o mesmo morador de rua dormindo placidamente no meio da calçada. O cara nem se moveu de tão pesado que dorme. Mais uma vez você pensa "olha o vagabundo preguiçoso. Tamanho sol quente, meio do dia, e o folgado ainda dormindo, nem se moveu".

Quando você sai do trabalho para ir para casa, por fim, já encontra o vagabundo meio acordado, meio dormindo, mas aí já nem pensa muito nele, pois só quer chegar logo no conforto do seu lar e dane-se o resto.

Deixa eu contar um segredo?

Muitos moradores de rua dormem pesado durante o dia, com o sol quente queimando, com barulho do trânsito e tudo, porque é o único momento do dia em que têm segurança.

Eles não dormem, demaiam, após noites em claro tentando se proteger de muito coisa ruim que encontram nas ruas.

Então, enquanto você dorme na segurança do seu lar, o morador de rua perambula de forma insistente, pois não pode dormir. Se dorme, o mundo vem e engole a ele.

E dia eles desmaiam onde for...