sexta-feira, 21 de junho de 2013

Então...


Hoje ocorreu uma segunda marcha aqui em Belém que pretendia ser igualmente pacífica. No começo existia muita dúvida acerca de tudo, pois houve uma grande desorganização após a primeira: várias marchas marcadas para o mesmo dia e horário, vários locais e pautas diferentes.
Isso é normal: um espaço surgiu e depois ficou vago, e muitas pessoas surgiram para tentar ocupá-lo. Não foi oportunismo, nem nada parecido, mas as pessoas estavam com um grito preso na garganta e queriam ir às ruas.
Na quarta-feira, dia 19/06, foi marcada uma reunião aberta na Praça da república para tentar então definir uma única marcha na quinta-feira, dia 20/06, além de demandas a serem levadas ao Prefeito, e foi assim ocorreu: muitos movimentos, alguns partidos, todos querendo falar, falar, falar, e nada decidir. Foram quase cinco horas de reunião em que mais se viu uma briga de egos do que outra coisa. Desta vez não era mais o povo, já eram os partidos, o mesmo de sempre, e foi então que a coisa desandou.
Por lógica tentamos escolher um horário razoável: reunir a partir das 16 horas e sair às 18 horas. Por prudência tentamos o percurso Praça da República – São Brás.
Perdemos em tudo.
O que ganhou: sair às 15 horas do CAN com destino à Prefeitura.
Às 15 horas, quando poucas pessoas podem ir...
Destino à Prefeitura, justo onde poderia ocorrer depredação e vandalismo...
Perdemos em tudo.
O que restava? Tentar organizar o que havia sido decidido e torcer que não resultasse em maiores problemas.
Na manhã de quinta houve novo encontro com o Comando da PM e da Guarda Municipal, e novamente se afirmou natureza pacífica do movimento. Informamos local de saída e chegada, e provável horário de saída, mesmo que ainda houvesse forte discussão sobre isso. O Comando da Guarda, já neste momento, informou que o Prefeito iria falar conosco na Praça, ou uma comissão seria formada e ele a receberia.

13:30 da quinta-feira, dia 20/06 – chego no CAN e me deparo com poucas pessoas. Fui logo falar com o Comando da PM presente, que já tratava de assuntos práticos com o Defenso Público Vladimir Koenig. Muitos tentavam atrasar o horário, mas as pessoas que estiveram presentes na reunião aberta do dia anterior não abriam mão do horário escolhido por elas. Depois de muito barulho, percebendo que havia uma maioria querendo sair mais tarde, assim aceitaram.
Por volta de 16:00 tentamos sair pela primeira vez, no que já fomos impedidos por um grupo que fazia questão absoluta de sair na frente da marcha com sua enorme faixa. Assim como eles haviam vários outros. Alguns toparam ir para trás da marcha, aceitando que só fossem na frente aqueles que tinham bandeiras do Brasil e do Pará.
Depois disso, mais briga... Muitos outros queriam sair na frente, acho que numa tentativa meio estranha de assumir a autoria daquilo tudo, sendo que o autor de tudo era o povo! Depois de uma pequena ação de guerrilha, conseguimos passar as bandeiras do Brasil e do Pará para a frente e finalmente saímos.
Depois descobrimos que um outro pequeno grupo resolveu sair antes de tudo e de todos, sem avisar nada a ninguém, e nisso os PMs também foram juntos e acabamos nos distanciado do comando da PM e ficando sem apoio... Mas nada disso nos abateu diante da festa enorme que rolava!

A marcha foi linda, nem preciso dizer. Foi organizada, foi ordeira e foi alegre... Rimos muito, todos que ajudavam a organizar, e assim seguíamos. Até um determinado ponto fui acompanhado por meu tio Augusto Pombo que fazia fotos. Na Presidente Vargas vi minha esposa e minha filha, e meus pais na janela. Muitas famílias, muitas pessoas com crianças e não somente jovens – uma das pessoas que mais puxava gritos e ajudava em tudo era um senhor acho que cego de um olho, a miséria estampada no rosto, e que não arredou o pé até o fim.
No meio da marcha, uma surpresa: toca meu celular e alguém diz “um segundo, o Prefeito vai falar!” Rapidamente pedi silêncio ao povo ao redor e conversamos de forma muito breve: ele poderia receber uma comissão dos manifestante, ou poderia descer e conversar conosco ali na praça. No final de uma breve conversa acabamos decidindo que ele desceria e falaria, e escutaria, e o que mais ocorresse, desde que não houvesse violência. Era o mais junto e democrático diante de um movimento sem líder e sem organizador, feito pelo povo, para o povo. Tentei procurar o Ricardo Silva, outra pessoa que está ajudando a organizar tudo, mas ele havia passado mal e teve que abandonar a marcha pelo caminho.
Já próximo do Ver-o-Peso me adiantei um pouco para chegar antes à Prefeitura e lá encontrei novamente o Vladimir Koenig já tratando da vinda do Prefeito e do que aconteceria depois. Nossos planos: para evitar violências, nós nos sentaríamos todos no chão e o Prefeito, também sentado no chão, nós escutaria e veria onde poderia ceder.
Já neste momento o povo começou a fazer muita pressão junto à grade que protegia a Prefeitura, e cada vez fazia mais e mais. Pedimos, gritamos, que fizessem o acertado e se sentassem, e logo aí vimos que não daria certo... Enquanto muito gritava SENTA, poucos gritavam NÃO SENTA. E logo uma minoria ligada a alguns movimentos e partidos começou a hostilização idiota de hostilizar tudo e todos pelo simples fato de hostilizar.
O Prefeito veio até a grade, cumprimentou a mim e ao Vladimir, e logo foi cercado por muitos líderes e lideranças, todos com suas pautas em mão pedindo para serem ouvidos.
O Prefeito deixou bem claro – ou falaria com todos, ali na praça, ou não falaria com grupos separados, mas sim com a união dos grupos que haviam organizado a marcha... Justo, mas aí surgia o problema: aquele movimento havia sido organizado pelo povo sem a participação de nenhum partido ou movimento. Por mais que eles quisessem tomá-lo, não há dúvidas de que ali ocorria algo voluntário – Não há líder! Não há organizador! Todos nós somos lideres e organizadores, porque somos o povo.
Nesta hora começaram a jogar objetos. Primeiro foi uma bandeira do Brasil, depois uma garrafa de água, depois um ovo... Nesta hora fui bem sincero: melhor entrar, Prefeito. Enquanto ele voltava ao prédio da Prefeitura, mais objetos eram jogados e ainda tentamos pedir calma, gritar SEM VIOLÊNCIA e SEM PARTIDO, mas já era tarde – bem ao meu lado havia um dos Comandantes da Guarda Municipal, homem alto e grande, quase 2 metros, acho, que pedia calma e fazia gestos neste sentido, e de repente ele foi atingido em cheio no pescoço por uma pedra.
Eu lembro bem do barulho seco da pedra batendo nele.
Lembro de ver sangue.
Lembro de vê-lo sem nenhuma reação e tombar no chão.
Eu e o João Henrique Santos, que estava ao lado, corremos até ele e nos colocamos por cima para evitar que fosse atingido por novos objetos que chegavam. O João foi atingido por uma pedra. Eu tive uma sorte imensa.
Como esse Guarda Municipal estava sozinho lá fora, meio distante dos demais, eu e o João tentamos carregá-lo para dentro mas simplesmente não conseguíamos. Desacordado, o corpo não tinha nenhuma rigidez e simplesmente braços e pernas tombavam como se ele estivesse em sono profundo.
Ainda sob pedradas, só conseguimos levar o homem para dentro com a ajuda de mais três ou quatro guardas, não lembro bem.
Lá dentro foram prestados os primeiros socorros e ainda voltei lá fora para tentar controlar as coisas, mas aquelas pessoas não queriam controle, muito menos conversar. Fui xingado e, diante de novos objetos, levado para dentro por um dos guardas que também corria para se abrigar.
Exigiam que o Prefeito fosse lá fora conversar com ela, mas jogavam pedras. Pediam paz, mas jogavam pedras. Gritavam SEM PARTIDO, mas balançavam suas bandeiras quase nas fuças dos Guardas Municipais que protegiam a entrada do Prédio com escudos.
Foi quase uma hora de grande tensão. Ficamos sitiados dentro da Prefeitura: Guardas, alguns manifestantes, jornalistas e servidores municipais. Poucos vândalos jogando muitas pedras e ameaçando invadir o prédio, num claro intuito de provocar a polícia a agredi-los primeiro. Tanto a PM quanto a GMB evitaram qualquer atitude, só passando a agir quando os vândalos não mais se seguraram: além das pedras jogadas começaram a tentar arrombar as portas da Prefeitura e a quebrar os vidros, e então a PM, acho, jogou a primeira bomba de gás.
Se nós que estávamos ilhados dentro do prédio sofremos com o gás, imagino os que estavam lá fora. Neste momento pudemos sair, e logo corremos por uma outra porta para evitar maiores risco. Somente a Guarda Municipal ficou lá.
Na saída ainda circulei pela frente do Palácio, mas já não encontrei nenhum conhecido. Também não encontrei famílias ou os estudantes que antes cantavam felizes o Hino da nação...
Só encontrei rostos cheios de um riso feliz e estranhamento sádico, pessoas que observavam aquilo tudo achando de uma beleza sem igual... Pedras jogadas, portas sendo chutadas e vidros quebrados... Eles pareciam gostar muito de tudo aquilo.
Mais bombas foram jogadas, mas logo que passava o efeito os gafanhotos voltavam... Por fim, a PM jogou uma grande quantidade de bombas e acho que turba acabou por se dispersar. Minha garganta e olhos ainda queimam. Depois veio a chuva e resolvi voltar para casa. Sem bateria no celular, achei que estariam preocupados.

Disso tudo, o que posso tirar?
Primeiro: sou de uma ingenuidade tremenda, quase beirando o besta. Achar que partidos e movimentos respeitariam a vontade do povo foi muito até para mim. O mais engraçado é ver pequenos partidos ou movimentos muito segmentados achando que podem tomar conta da vontade do povo. Um dos gritos de sempre é SEM PARTIDO, no sentido de que não queremos partidos ali, que aquilo é nosso. O mais engraçado é perceber pequenos partidos e movimentos segmentados seguindo o mesmo rumo dos grandes – cada vez representando menos a todos.
Segundo: toda essa manifestação do povo foi tomada de forma mesquinha por pessoas que não querem conversar, não querem resolver e nem sabem o que querem. Eles não querem resolver porque precisam estar sempre brigando, porque somente assim sabem viver. Infelizmente eles são mais organizados do que nós, então eles ganham.
Terceiro: essas pessoas sofrem de séria esquizofrenia. Primeiro xingam o Prefeito, mas quando ele aparece se chegam todos carinhosos e de fala mansa apresentando suas pautas. Primeiro pedem que o prefeito venha falar com eles, mas depois jogam ovos e pedras. Primeiro querem ser recebidos como lideranças de algo que seja, mas não aceitam que existam outras lideranças e nem outra causa, pois só a sua causa é válida.

Sim, todos nós fomos ingénuos. Os poucos de hoje não apareceram na primeira marcha porque marchamos de nenhum lugar para lugar nenhum. Assim que puderam, mudaram os rumos justamente para onde queriam.

Relato tudo isso porque realmente não sai da minha cabeça. O som seco da pedra batendo no pescoço. O som da madeira cedendo ao chutes. O barulho das bombas de gás. O gás queimando garganta e olhos...

Uma pena que tenha terminado assim uma marcha com quase 20 mil pessoas pacíficas. Uma marcha absolutamente calma, cheia de jovens risonhos e felizes por estar ali. Uma marcha onde vimos uma senhora idosa balançando a bandeira do Brasil e resolvemos cantar o Hino Nacional em sua homenagem. E não foram poucas as vezes em que os pelos do braço se arrepiaram ou as lágrimas tentaram brotar, tanta era a emoção de ver aquilo acontecer.
Podíamos esperar, mas não quisemos esperar.